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segunda-feira, 5 de abril de 2010

Contos Noturnos I

Quando esta história aconteceu, ainda não havia J.K.Rolling e seu famoso Harry Potter. Tão pouco, George Lucas havia filmado o final da trilogia de Star Wars que, aliás, contava o início da saga. Coisa de americano. Era uma época em que os celulares ainda não haviam se popularizado e eram muito caros. O ano, 1997. Tinha um Corsa lindo, 1995, completo. Era roxo. Lindo. Sinto saudade dele.

Bom, tudo começou quando percebi que faltava uma peça de acabamento do carro, que cobrem os parafusos. Estava em viagem. Quando voltei, do fui à concessionária comprar a peça.

— Infelizmente, não temos esta peça em estoque e nem há previsão de pedidos. Mas o senhor pode falar com o chefe da oficina. Quem sabe ele tem algum carro sinistrado e possa dar algumas para o senhor.

Fui à oficina falar com o José (todos os nomes são fictícios) e ele prontamente me encaminhou a um carro vermelho, com sinais de batida grave. Entrou no carro e retirou duas tampas de parafuso - as peças que precisava. Quando dizem que a curiosidade matou o gato.... Foi aí que perguntei o que houve com o carro.

— Uma tragédia! As duas moças que estavam morreram no acidente! Uma pena mesmo!!

Eu, sem saber o que fazer, fiquei segurando aquelas pecinhas e olhando meu amigo José. Depois de alguns segundos, decidi levar as tampinhas para casa. Assim que cheguei, joguei-as na gaveta e procurei não pensar nelas. Mas meu perfeccionismo falou mais alto. Duas semanas andando e olhando aquele parafuso descoberto foram suficientes para abandonar medos e superstições e colocar a tampa em seu lugar.

A primeira viagem foi a prova de fogo: andei mais devagar e não fiz nenhuma ultrapassagem perigosa. Como nada aconteceu, passei a viver normalmente e esqueci completamente a origem daquelas pecinhas. Uma noite, entretanto.....

Voltava para casa depois de mais um dia de trabalho. Como trabalhava fora da cidade, enfrentava, uma vez por semana, quase 400 km de rodovia, primeiro pela manhã e depois à noite, quando voltava. Em dez anos fazendo isso, descobri que teria ido à Lua, se a viagem fosse no espaço. Voltemos ao nosso texto.

Como dizia, voltava para casa. Estava cansado e, como de costume, trazia comigo uma professora, muito simpática, chamada Norma. Ela falava tanto quanto eu. Então, é possível imaginar que nossas viagens eram nada silenciosas.

Era uma noite estranha. Não havia estrelas no céu, como se tudo fosse absolutamente negro. Não havia vento e, apesar de ser época de safra, o trânsito estava calmo demais. Nenhum carro nos passava fazia algum tempo, e não havia carros ou caminhões na rodovia.

Estranhamente, o carro estava lento, como se estivesse bem pesado. O ponteiro raramente passava de 80, apesar da potência d carro ser razoável. Aquilo me assustava, mas não disse nada para não assustar minha companheira de viagem.

De repente, em uma das curvas, as luzes do carro iluminaram uma placa que marcava a entrada de uma propriedade. Eu a conhecia bem, afinal, passava ali toda semana, invariavelmente. A placa, apesar de não estar ventando, balançava freneticamente. Norma, que falava comigo como era de costume, nem reparou.

Eu, até aquele momento, só sentia algo estranho. O que aconteceu depois é que vou contar agora. Confesso que foi aterrador.

Aprendi, nos anos de estrada, a olhar os três retrovisores do carro toda vez. Automaticamente, olhava o da direita, o da esquerda e o do centro, periodicamente. Direita, esquerda, centro. Direita, esquerda, centro. Frases de Norma. Direita, esquerda, centro. Direita. Esquerda. Centro. Meu Deus!!!!

Devo ter dito isso. Se não disse, perdi uma ótima oportunidade. O que vi, é muito difícil de descrever. Vou tentar.

No tradicional movimento direita, esquerda, centro, vi um rosto lívido no banco traseiro. Era uma jovem com aproximadamente 30 anos, olhos neutros, rosto sério, mas sem ser fechado. Ela olhava placidamente para mim. Não era um olhar frio, mas não era vivo. Era apenas um olhar. Meu coração foi a mil. Comecei a suar frio. Que é isso? Você tem 30 anos e está vendo coisas? Eu me acalmei e voltei aos movimentos. Direita, esquerda e..... Lá estava ela. Plácida. Serena. Única. Comecei a sentir a boca seca. Mesmo assim, tentei me controlar. Isso é impossível! Só acontece em filme de terror. Na rodovia, nenhuma viva alma. No céu, nenhuma estrela. Nem o vento estava lá. Estávamos sozinhos naquele mar de escuridão e desespero.

Olhei de novo. Ela me encarava. O que queria? Por que não falava? Estávamos mortos e não sabíamos? Muitas perguntas eu fiz. Nenhuma resposta ela me deu. Fiz então, o que podia: rezei. Rezei como nunca. Rezei desesperadamente e silenciosamente. Um Pai Nosso atrás do outro. Nenhum carro na rodovia. Nenhuma luz no céu. Nenhum vento. Só nós três.

Norma percebeu minha agonia.

— O que está acontecendo? Perguntou.

— Por favor, alcance o Novo Testamento que está no porta-luvas, abra em qualquer página e leia, por favor.

Sem questionar, ela fez o que pedi. Enquanto lia, continuava a rezar. Foram 200, 300 Aves-Marias e um sem número de Pais-Nossos. Ela continuava lá. Quase em desespero, quis parar o carro, conversar com ela. Saber, afinal o que queria.

De repente, os galhos e as folhas das árvores se mexeram. Vi estrelas no céu. Um caminhão. Alguém nos ultrapassando. O velocímetro do carro subindo a 110 km/h. Olhei para trás. Ela não estava mais. Com alívio, pedi a Norma que parasse.

Finalmente uma cidade, pensei quando vi as luzes se aproximando. Norma, finalmente, criou coragem.

— Pode me contar o que aconteceu?

Então, mais calmo, narrei todos os acontecimentos, desde o princípio.

A viagem caminhou tranquilamente e foi bem rápida. Deixei minha companheira de viagem em sua casa e fui para a minha. Quando cheguei, beijei minha esposa e meus filhos e dormi o sono dos anjos.

Mas uma coisa tenho que contar. Se soubesse que aquilo aconteceria, teria feito antes: Norma, depois de saber o motivo de eu pedir que lesse o Evangelho, fixou-se no banco do carro, imóvel, braços cruzados e incrivelmente calada. Percebi que tinha vontade de olhar para trás, mas o medo de ver a paralisou. Foi o resto de viagem mais tranquilo e silencioso de todas as que fiz naquele ano.

Quanto à mulher, nunca mais tive sua companhia. Só lamento que jamais tenha sabido o motivo.