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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Festa de Casamento

Festa de Casamento

Luís Cláudio Ragioto

Sou filho da Ditadura. Quando nasci, um mês antes do Ato Institucional número 5, o famoso AI5, o país atravessava um momento difícil. O Regime Militar limitava a liberdade das pessoas através da censura e de outros meios não tão legais como se fazia supor. Havia uma resistência, principalmente dos intelectuais e a música servia também como meio de manifestação social e crítica ao Governo. Era a época dos grandes festivais de música popular brasileira, da vitória na Copa do Mundo no México, e o mundo ficou maravilhado com aquela seleção que tinha, entre outros nomes, Pelé, Jairzinho, Gérson e Carlos Alberto. Mas este texto não vai falar desse período, mas sim de um episódio de minha infância, sobre o qual as lembranças já não parecem ser reais.

Filho de pessoas humildes e com numerosos parentes (meu pai tinha nove irmãos e minha mãe, 11), cresci alheio aos acontecimentos do mundo, vivendo em um mundo feliz sem grandes complicações.

Naquela época, as coisas eram bem mais difíceis e tomar um refrigerante era em ocasiões especiais. Um iogurte a gente só via quando ficava doente, e olha lá. Por isso, as festas de casamento, os batizados e velórios eram festejados. Nos casamentos, tínhamos a oportunidade de comermos pão com carne moída, uma verdadeira iguaria aos olhos de uma criança. Mas o momento mágico era quando podíamos tomar uma sodinha. Havia todo um ritual. Pegávamos a sodinha e logo alguém aparecia com um prego para furarmos a tampinha. Que delícia era sentir o gás entrando pelo nariz e descendo queimando a garganta!!! O engraçado era que ninguém pegava tétano.

E foi num acontecimento desses que conheci a história que vou contar para vocês. Juro que tudo é verdade, e que, no máximo, vou exagerar um pouquinho.

Era o dia do casamento do Tio Anjo (Ângelo, na verdade, o irmão caçula de meu pai). A gente comia aquele macarrão típico italiano, com muito molho e almôndegas suculentas, já que o casamento no civil tinha sido de manhã e só haveria o almoço.

Tudo corria bem até que alguém resolver abrir a caixa de pandora da família e liberar aquelas histórias que a gente tenta esconder as todo custo mas não adianta: tem sempre alguém que lembra.

Como disse, não sei quem, lembrou da época em que a Tia Merca (América para os íntimos) estava grávida e resolveu ter um daqueles desejos que só grávida tem. Bom, durante minha vida, vi todo tipo de histórias: teve a do cara que atravessou a cidade a pé com uma melancia nos braços; a do outro que saiu de madrugada (quando só os bares ficavam abertos) para comprar chocolate para a esposa, de moto, numa noite de inverno chuvosa e gelada e comprou o chocolate errado, mas a vontade da tia Merca nunca foi superada.

Bom, foi assim: Meu avô tinha uma cadela daquelas policiais. Eu explico. Pobre chama de cachorro policial aquele que é grande, peludo, preto e tem tanta mistura que só se sabe que é um cachorro, raça mesmo, não tem. O nome dela era Diana. E ela era brava feito o cão (com o perdão do trocadilho!). Ninguém chegava perto da cadela, a não ser o Tio Miro (Valdomiro, de nascimento), que era quem a alimentava. Nem meu avô conseguia fazer isso.

Num belo dia de verão (adorei essa sentença), a cachorra escapoliu da corrente e voltou no final da tarde, toda machucada e com a parte inferior da mandíbula inchada, depois de sua curiosidade canina tê-la feito morder uma colmeia de abelhas que havia caído de uma árvore que ficava no quintal de minha avó. Como ela era negra como a noite, ficou com uns beiços gigantes e brilhosos. E mais cachorra do que nunca.

A Tia Merca, como ia dizendo, teve uma vontade de grávida.... Cismou de morder a boca dela (assim mesmo, um cacófato). Em vão, os irmãos e minha avó tentaram fazer com que desistisse dessa ideia, mas nada deu resultado.

Então, pensou-se o impensável e um plano foi arquitetado: os cinco irmãos iriam segurar a cachorra para que minha tia mordesse aqueles suculentos beiços inchados. Dirigiram-se contra aquele animal assustado, acorrentado e confuso. Pela frente, o Tio Miro. Pelos lados, o Tio Anjo (Ângelo) e meu pai, o Nego (Osmar) e, por trás, o Tio Kilau (o Claudomiro). O Tio Dema tinha que trabalhar naquele dia e por isso não estava. O marido da Tia Merca, o Tio Romeu (Romeu mesmo: esse não tinha apelido), disse que não tinha nada a ver com isso e ficou sentado na soleira da porta, ao lado de uma cerveja e com um cigarrinho na boca, rindo de tudo aquilo. A favorecida, a Tia Merca, ansiosa, dava ordens para todo mundo ao mesmo tempo.

Tudo corria bem. Todos executando muito bem sua tarefas, mas Diana, do alto de sua sabedoria canina, resolveu perverter a ordem das coisas e questionar os poderosos. Num acesso de raiva e ferocidade inesperada (pelo menos para os humanos ali presentes), ela rompeu a corrente que a segurava e disparou contra seus agressores. Foi uma loucura. Imagine quatro homens enormes e uma cachorra, todos tentando cuidar de seu bem-estar. Na frente, o Tio Kilau correndo e desviando sua bunda das dentadas da cadela. O meu pai, fugindo para o outro lado, não viu o Tio Anjo parado, com a expressão catatônica, e o atropelou. Calculo que ele deve ter sido jogado a uns três metros de distância, caindo de costas sobre o chão batido de terra do quintal da casa da Vó Ana.

Pega ela Nego, gritava a Tia Merca. O tio Romeu, dando gargalhadas, nem lembrada a sua cerveja e as outras mulheres todas reclamando do poeirão que a correria dos homens levantava.

Isso tudo durou algum tempo até que, cansada, exausta e conformada com a sua situação de evidente inferioridade mental, afinal, o que tem demais uma mordidinha no beiço, Diana desistiu de correr e se entregou. Foi agarrada e levada á força para seu carrasco. A Tia Merca, babando, olhou aqueles beiços deliciosos e tascou-lhe uma dentada. Todos ouviram o gemido surdo, graças à boca fechada à força. Ouvindo os homens contando o evento durante o almoço, tive a impressão de que aquela cena durou muitos dolorosos.

Passada a vontade, minha tia abandonou a boca de Diana e os homens a soltaram. Quando se viu livre, a indefesa cachorra desapareceu através do pomar. Anjo, Miro e meu pai finalmente descansaram.

Tudo voltou à normalidade até que perceberam que um dos irmãos não estava presente. Durante dois dias, procuraram o tio Kilau por todos os lados e nada. Finalmente, no finalzinho da tarde, ele apareceu. Estava todo arranhado, machucado, com a roupa rasgada. Sobre o que aconteceu, ele não disse nada. Mas o mais estranho de tudo é que ninguém entendeu o que acontecera com uma paineira que apareceu com os galhos quebrados e toda cheia de marcas.