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sexta-feira, 4 de junho de 2010

O bêbado, o ônibus e a madrugada

Luís Cláudio Ragioto

Viajei pelas estradas do Paraná durante dota minha vida de professor. Principalmente pelo norte e noroeste do Paraná. Cheguei a percorrer, semanalmente, mais de mil quilômetros entre Maringá, Nova Esperança, Paranavaí, Campo Mourão e Umuarama. Apenas entre Maringá e Umuarama, foram 10 anos de viagem, mais de 25 quebra-molas e 150 km (apenas de ida) semanais. Uma pequena estatística: como professor, trabalho 200 dias letivos em média, pelo menos, por ano, o que totalizam 28,57 semanas. Como havia reuniões eventuais, vou arredondar para 30 semanas. Assim, percorri mais ou menos 90.000 km e 15.000 quebra-molas em um único trajeto. Se eu incluir os motéis de beira de estrada, os postos de gasolina a conta vai ficar gigantesca.

No começo, as viagens eram de ônibus até que eu comprei um fusca 72, verde, bonito, com um par de faróis de milha, o que fazia lembrar um herói da minha infância: o Besouro Verde. Durante as viagens, vi e ouvi muita coisa> Algumas, vou contar nessas linhas.

Pegava o ônibus toda madrugada, entre domingo e segunda, meia noite e dez. Bom, isso quando o latão (carinhosamente) não atrasava, pois vinha de Londrina. Minha poltrona era sempre a 31, pois eu conhecia todos os bilheteiros da empresa que fazia aquela linha. Não me lembro se a chuva era forte ou fraca, mas certamente chovia. Normalmente, o ônibus vinha bem vazio, mas naquele dia, havia muito mais gente que de costume.

Pensei que tinha sorte por ter minha passagem numerada. Só pensava em entrar, encontrar meu lugarzinho aconchegante e dormir O ônibus chegava às 3;40 da manhã em Umuarama e minhas aulas começavam às 7:15.

Quando o ônibus chegou, com apenas 10 minutos de atraso, fomos todos ocupando nossos lugares. Eu me lembro apenas de alguns: um homem gordo, bem vestido; uma mocinha, com pouco mais de 20 anos; duas senhoras de meia idade, e um homem que estava muito bêbado e falava bem alto.

O bêbado foi o último a entrar. Falando enrolado, olhou para o lugar vago a meu lado. Torci muito para que desistisse. Ele titubeou, disse alguma coisa no idioma embriagolês e dirigiu-se para o lugar vazio, ao lado da mocinha. Confesso que suspirei.

Ao contrário do que imaginava inicialmente, o cara dormiu rapidinho e cheguei a acreditar que a viagem seria tranquila, indolor, a não ser pela chuva, que agora caía torrencial.

Enfim, o ônibus partiu. Tirando o frio que entrava pelas janelas mal vedadas, e pela água que escorria (pelo lado de dentro de algumas), os solavancos provocados pelos buracos da rodovia. Tudo corria bem. Muitos, já em sono pesado, respiravam forte (uns até roncavam). Como disse, tudo corria bem, até que......

"Brrrruuuuuuuppppppp!!!!

Assustados, alguns, como eu, acordaram. O que foi isso? Pensei.

"Brrrruuuuuuuppppppp!!!! Dessa vez, mais prolongado.

O cheiro acabou denunciando.... O rapaz alcoolizado estava peidando terrivelmente alto. E, se fosse só o barulho......

Ei moço! Para com isso! Disse a moça, coitadinha, que era a primeira a ouvir (e a sentir) o peido do bacana!!. Como ele não acordava, empurrou o bêbado com força até que ele, meio zonzo, acordou.

Para de soltar pum assim! É nojento!! E sai daqui! Credo! E fez uma careta que me lembrou uma criança fazendo cara de nojo diante de um inocente brócolis cozido e pronto para ser devorado. Sem ter remédio, o homem resmungou algo, levantou-se e foi sentar-se no fundo do ônibus. Aquilo foi um alívio para a turma da frente, e terrível para a turma do fundão, que já tinha o banheiro por companhia.

Novamente, a calma tomou conta do ônibus. Apesar da chuva e da escuridão do ônibus, nós nos sentíamos protegidos e felizes por não ouvir mais os escandalosos peidos, sem sentir seu futuns. Era uma calmaria total, entrecortada pelos relâmpagos que teimavam em iluminar o ônibus, até que......

VEM CAPETAAA!!!!!

Sobressaltados, eu e os passageiros do ônibus olhamos assustados. O que fora aquilo???

VEM CAPETA!!!! EU DUVIDO QUE VOCÊ TEM CORAGEM!!!!

Mais um pouco e percebemos o que estava acontecendo. O bêbado estava de pé, no meio do ônibus, gritando, alucinado, chamando o danado.

Quando se aperceberam disso, as duas senhoras começaram a rezar freneticamente. A mocinha chorava copiosamente. Um homem grandão encolhia-se assustado. Duas crianças, surgidas do nada, começaram a gritar também. Foi um tumulto geral.

Os que não gritavam, choravam. Os que não choravam, Os que não gritavam nem choravam, rezavam. Eu até vi um cara que ria muito, num cantinho do ônibus. Eu, do alto dos meus 1,68 apenas olhava, quietinho.

Acreditar que o capeta viesse, eu não sei se acredeitava, mas também não duvidava. Afinal, quando a gente não conhece, é melhor não questionar.

Penso que isso durou os mais longos segundos de minha vida e só parou quando um cara, vestido de preto, levantou-se. Era magro e muito alto. Tão alto que ficou curvado dentro do ônibus. Ele pegou o rapaz pelo colarinho, olhou bem dentro dos olhos dele e disse que se não descesse na próxima parada, ele o jogaria para fora do ônibus. O bêbado até tentou questionar, mas a força sobrepujou a coragem e, murchinho, o bêbado sentou-se, calado, num lugar qualquer do ônibus.

Por sorte, o coletivo fez sua próxima parada. Poucos desceram. Entre eles estava o bêbado. Aliviados, todos, a seu modo, rezaram. Eu tenho até a impressão de que vi alguém indo para o banheiro todo urinado, mas não posso provar.

Como aquela era a penúltima parada, pensei que poderia agradecer ao nosso salvador assim que chegássemos ao nosso destino. Dormi sossegadamente o restante da viagem. Não tão sossegado assim, pois a cada som diferente, abria os olhos, assustado. Vai que o demo tinha vindo mesmo??

Bom, finalmente a viagem acabou e eu fui procurar nosso salvador. Estranhamente, ninguém o vira descer e, pela contagem do motorista, não havia ninguém com o biótipo que descrevemos. Como eram quase 5 horas da manhã e eu tivesse que trabalhar dali a duas horas, fui para o hotel em que nos hospedávamos sempre.

Ainda hoje, penso em tudo aquilo que havia acontecido naquela noite. Realmente, se existem anjos ou demônios eu não sei. Sei que nosso anjo nos salvou naquela madrugada em que o bêbado invocou o demônio.